Capítulo 3 - Lembranças do Passado

Finalmente eu sentia que havia estabelecido uma ligação afetiva com alguém, uma pessoa que me amava e a quem eu retribuía o sentimento de uma forma intensa. Para completar esse momento especial da minha vida, eu tinha sido aceito por toda a família do meu amado.
Porém, de repente, algo aconteceu bem no meio desse ponto crucial da minha história. Enquanto estava, orgulhosamente, de pé bem em frente ao Bernardo, comecei a sentir as coisas e as pessoas ao meu redor se afastando, e, então, havia somente escuridão.
Repentinamente, me vi transportado para um lugar familiar, ao qual eu não desejava voltar tão cedo: minha casa. Estranhamente, eu estava presenciando cenas da minha vida que já haviam ocorrido, tal que eu parecia estar assistindo à minha trajetória como um mero expectador e a cena que eu presenciava era a última de que eu tinha lembrança, a qual retratava justamente o dia em que meus pais descobriram a minha orientação sexual.
Eu lembrava de toda a minha história antes de chegar à casa de Bernardo, só não conseguia recordar como eu tinha chegado até a floresta da qual ele me resgatou, porém, não queria dizer àquela família, que me acolhera tão bem, de onde eu tinha vindo, pois tinha medo que eles preferissem me levar de volta pra casa.


Os meus pais são o Rei e a Rainha de Héliopolis, um reino formado, predominantemente, de planícies e com um clima ensolarado. Eu sou filho único, portanto, meus pais sempre esperaram que eu me casasse com alguma princesa de outro reino para aumentar a área de abrangência do seu reinado através do estabelecimento de alianças.
Porém, desde cedo eu já me interessava por pessoas do meu mesmo sexo e, inclusive, tive várias experiências de descoberta com príncipes de outros reinos com os quais tinha contato e, até mesmo, com alguns súditos, conforme apareciam oportunidades.
Conquanto eu sempre tivera muita experiência com diversas pessoas do reino, meus pais não tinham conhecimento das minhas aventuras, pois os príncipes não hesitavam em preservar a sua privacidade e evitar escândalos, bem como os súditos não  ousavam revelar meu segredo por medo de represálias.
Portanto, havia um aparente equilíbrio entre a manutenção da minha imagem como um príncipe que futuramente se casaria com uma princesa, tal como os meus pais queriam, e a satisfação dos meus desejos mais profundos através das minhas aventuras. Mas, certo dia, eu fui descuidado, quando conduzi um dos meus súditos para um dos quartos existentes em nosso castelo, pois nós adormecemos e, provavelmente, algum servo alertou meu pai, que apareceu no quarto e presenciou a última cena de que me lembro antes de parar densa Floresta do Leste: o seu filho nos braços de um homem, e pior ainda, de um súdito.


Surpreendentemente, depois dessa cena não houve uma lacuna, como em todas as vezes que eu tentava lembrar como eu tinha terminado naquela floresta, os fatos continuaram a ocorrer como se a minha mente tivesse recuperado as informações que eu pensava ter esquecido. Depois do meu pai presenciar a cena mencionada, houve o seguinte diálogo:

- Felipe...!
Depois de me recompor, segui para o quarto dos meus pais, que já estavam me esperando. Minha mãe, que estava aos prantos, e o meu pai com um semblante irado me deram duas opções para resolver a situação na qual eu me encontrava: eu poderia acusar, na frente de todo o reino, o súdito com o qual eu havia dormido de ter me assediado e condená-lo ao exílio; ou eu teria que deixar o reino e nunca mais voltar, pois havia desonrado a minha família e aquele era o único modo de me redimir com os meus antepassados.

- Calma pai, eu posso explicar o que está acontecendo aqui!
- Meu filho, não há nada o que explicar,  a situação é óbvia! Como você ousa trazer este homem para dentro do nosso castelo e se deitar com ele em um dos nossos aposentos?! Você não respeita os seus pais? Você não respeita  a si mesmo?
- Pai...
- Não ouse proferir qualquer palavra! Eu não quero ouvir nada! Você me desonrou, se perverteu e, com certeza, lançou a sua alma em profunda perdição! O que você fez foi inaceitável e, a partir do momento em que decidistes seguir esse caminho de perdição, automaticamente, assumistes as consequências que isso trará! Recomponha-se e me encontre em meus aposentos o mais breve possível! E quanto a este servo, será banido deste reino para sempre, junto com toda a sua família, e se ousar voltar meus cavaleiros estarão autorizados a lhe tirar a vida!

O reinado do meu pai sempre foi conhecido em toda a extensão do nosso reino como o mais pacífico de todos, pois ele, dificilmente, punia os delitos com enforcamentos ou outra forma de punição, tal como ocorria em outros reinos. Porém, devido a alguns preceitos religiosos, o meu pai não admitia em suas terras a prática de homossexualismo, por considerar uma ofensa grave, portanto, eu, como o filho do Rei deveria servir de exemplo para a coibição dessa prática.
Eu nunca tinha agido de forma injusta em toda a minha vida, de modo que nunca deixaria que alguém fosse exilado sob uma falsa acusação, já que aquele servo não me seduzira, pelo contrário, havia sido seduzido por mim a me acompanhar àquele aposento onde tínhamos sido flagrados. Dessa maneira, eu tive que deixar meu reino, dizer adeus aos meus pais e partir rumo ao desconhecido, sem destino ou perspectiva. Meus pais me muniram com suprimentos pra alguns dias, um cavalo e algumas moedas.
Para piorar a minha situação, no meu segundo dia de caminhada eu fui abordado por alguns sujeitos no meio de uma estrada, os quais roubaram todos os itens doados pelos meus pais e a minha vestimenta, que foi trocada por outra de menor qualidade. Os sujeitos me golpearam na cabeça, amarraram-me e me transportaram por um longo caminho, até que me deixaram no meio da Floresta do Leste, onde eu fui encontrado por Bernardo.
Depois desta última cena, onde eu recordava o momento em que Bernardo havia me encontrado na floresta, eu, repentinamente, vi tudo ficar embaçado. Depois disto, comecei a ouvir várias vozes indiscerníveis em meio à total escuridão, sendo que as vozes foram, progressivamente, ficando mais inteligíveis e o escuro começou a desaparecer, dando lugar à imagem da face de Bernardo, porém, desta vez, ele não estava me salvando na floresta, mas sim debruçado sobre mim chamando pelo meu nome.
Quando consegui organizar e processar as informações ao meu redor, percebi que estava deitado na minha cama, dentro da casa de Bernardo, enquanto a família toda estava em meu quarto, preocupada comigo e aflita para saber se eu estava bem, pois eu acabara de desmaiar durante o café da manhã. Nesse momento, entendi que eu acabara de recordar o caminho que levara até aquela família, então comecei a me questionar se deveria ou não lhes dizer a verdade, pois até aquele momento eu era um rapaz que não tinha lugar para ir, o qual foi acolhido pela caridosa família, porém, agora eu já sabia de onde tinha vindo e, pior ainda, sabia que era um exilado.

Mesmo depois que todos aqueles que estavam no meu quarto se asseguraram de que eu estava bem e se dirigiram para seus respectivos afazeres, Bernardo ainda continuou comigo, segurando a minha mão e me olhando sem dizer nada. Depois de algum tempo, ele se deitou a meu lado em minha cama e me envolveu em seus braços, beijou o topo da minha cabeça e disse:

- Eu fiquei muito preocupado com você...há muito tempo que eu não me sentia tão bem ao lado de alguém...se acontecesse alguma coisa...

Conforme ele proferia cada palavra eu sentia que ele me segurava cada vez mais forte e fiquei lisonjeado por saber que já significava tanto pra ele. Nesse momento, não tive nenhuma outra alternativa senão corresponder o seu carinho com a mais pura sinceridade. Então lhe disse:

- Bernardo...eu preciso lhe contar algo...
- O que é? você não está se sentindo bem de novo?
- Não...Calma...olha, eu estou bem! Mas preciso lhe contar algo que ocorreu durante o meu desmaio na cozinha...eu..eu já lembrei como eu vim parar aqui!

Eu lhe contei tudo. Comecei pelo o evento fatídico com o servo e finalizei com o nosso encontro na Floresta do Leste. Conforme eu lhe contava os fatos do meu passado, não podia deixar de me preocupar com a possibilidade dele se decepcionar com a forma como eu usava as pessoas ao meu redor para obter prazer. Porém, preferi ser o mais transparente possível na minha explicação, para que eu sentisse que merecia pelo menos um pouco do carinho e da atenção que aquele rapaz me direcionava.
Durante a minha explicação, Bernardo continuou na mesma posição em que estava no inicio da conversa e, em alguns momentos, afagava o alto da minha cabeça, com as suas mãos, que apesar de grandes, tinham um toque suave, que me trazia uma sensação de paz e segurança. Quando eu finalizei a explicação ele me puxou mais ainda em direção ao seu peitoral e disse:

- Você está seguro agora! Não se preocupe!
- Mas você não acha que seu pai vai sugerir que, agora que já lembrei a minha origem, eu volte para lá? eu não sou mais um desmemoriado que vocês acolheram aqui...eu sei de onde eu vim...mas eu não quero....

Quanto mais eu pensava na possibilidade de ter que ir embora daquela casa, ficava mais nervoso e perdia a linha de raciocínio sobre o que eu falava. Bernardo repousou uma mão sobre o meu rosto, o que me fez parar de falar, então, olhando fundo em meus olhos, ele disse:

- Felipe, eu nunca vou te deixar ir embora dessa casa sob nenhuma hipótese que não seja a sua própria vontade. Então, desde que você não queira ir embora agora que lembrou a sua origem, não há com o que se preocupar. Além disso, eu já lhe disse que todos aqui em casa gostam muito de você, como você pode ter percebido hoje durante o café da manhã.
- Então você realmente acha que eu não preciso ir embora por causa disso?
- Absolutamente não! Há algum tempo que você deixou de ser só um estranho que eu achei perdido na Floresta do Leste. Se você não fosse meu namorado, talvez meu pai até te adotasse!

Depois da última frase nos rimos bastante. Quanto a mim, a risada estava mesclada com alívio por poder compartilhar sem preocupação a minha origem e felicidade por ter encontrado alguém tão especial como Bernardo. Depois de cessarem as risadas, Bernardo continuou o que estava dizendo.

- Felipe, reafirmo que você não se preocupe quanto a isso. Mas queria pedir pra que a gente possa compartilhar o que você me falou com a minha família, pois eu prefiro que seja dessa maneira, sem segredos ou informações ocultas entre aqueles que fazem parte dela.
- Se você diz que não devo me preocupar eu não vejo problema em compartilhar isso com eles. Mas você pode me dar um tempinho pra me recuperar? ainda estou com dor de cabeça.
- É Claro! Eu vou ter que ir trabalhar agora, mas volto à noite e, se você já estiver melhor, podemos fazer isso.
- Tudo bem! Até depois!

Bernardo ainda deu mais um beijo na minha testa e então se levantou e andou até a porta. Quando estava quase saindo do quarto, ele se virou em minha direção e proferiu as seguintes palavras:

- Felipe...Eu te amo!

Depois de dizer isso ele, efetivamente, saiu do quarto. Aquelas palavras me atingiram de uma forma tão intensa, que eu não consegui responder antes que ele tivesse deixado o aposento, porém, isso me deixou estranhamente contente, pois percebi que ele não havia dito aquilo pra ouvir que eu também me sentia daquela forma, mas simplesmente para me dizer o que estava sentindo.
Devido à forte dor de cabeça que eu estava sentido, acabei dormindo boa parte do dia. Quando acordei Bernardo já havia retornado para casa e estava ao meu lado, me observando enquanto eu dormia. Já estava tarde da noite quando eu acordei e ainda me sentia bastante indisposto, mesmo depois de ter descansado bastante, então perguntei a Bernardo se ele poderia ficar comigo em eu quarto naquela noite. Consecutivamente à sua resposta afirmativa, eu me aproximei ainda mais dele para abraça-lo e nos organizamos em uma posição confortável para podermos dormir. A sensação de estar com ele era tão boa e calmante que rapidamente eu caí no sono.
Na manhã seguinte eu acordei e Bernardo não estava mais ao meu lado, então tomei banho e desci para tomar café da manhã, imaginando se ele já estaria sentado à mesa, tal como eu confirmei quando cheguei à cozinha. Como esperado todos indagaram sobre o meu estado de saúde e relataram o quão ficaram preocupados na manhã anterior quando eu desmaiei. Então, aproveitando a conversa eu resolvi compartilhar com eles o que eu recordara.


- Gente...queria a atenção de vocês um instante pra contar algo que aconteceu ontem...eu já contei ao Bernardo e hoje queria compartilhar com vocês, que eu considero como a minha família...
- O que aconteceu Felipe? Você está bem?
- Estou sim Manoel, não é nenhum problema de saúde...eu vou explicar...

Eu contei toda a história para o restante da família, mas fui cuidadoso em omitir detalhes que eu não omitira quando contei a mesma história a Bernardo e, com certeza, ele entendia o porque. Porém, posteriormente eu viria a perceber que em ambos os casos eu, inocentemente, esqueci revelar o nome do lugar de onde eu tinha vindo, sendo que isto seria de grande relevância em momentos vindouros.

- Felipe...eu não entendo o motivo dessa atitude por parte dos teus pais! Bernardo e Luiz naturalmente se interessam por homens e eu não vejo qualquer problema nesse sentido, assim como não veria se eles se interessassem por mulheres.
- Eu compreendo a sua perplexidade Manoel, pois os costumes desse vilarejo, de certa forma, assustaram até a mim! Eu não conseguia compreender como esta questão era tratada tão naturalmente aqui. Os meus pais também não entenderiam e é por essa falta de conhecimento que eles agiram tão severamente para comigo, mas no fundo são pessoas de bom coração.
- Realmente não faz o menor sentido essa atitude da sua família! Durante muito tempo fui cortejada por mulheres, mas atualmente estou compromissada com um rapaz do vilarejo. Se nossa relação não der certo eu poderia muito bem me engajar com uma dama.
- Naturalmente Paula, nós somos livres para escolher quem nos agrada, ou melhor, quem nos encanta! Apesar de eu nunca ter sido cortejada e nem ter me engajado com mulheres, eu não vejo qualquer restrição quanto a isso.
- Este é um dos pontos que sempre me fez sentir "encaixado" aqui nesta casa, além da acolhida de vocês é claro. Quem me dera meus pais fossem tão liberais sobre esse assunto, tal como você Manoel!
- Eu também sou muito rígido com minhas crenças Felipe, por isso estou tentando compreender a atitude dos teus pais, mas o que realmente me intriga é que eles puseram isto acima de você, que é o único filho deles. Isto não está certo!
- Manoel, agora que vocês já sabem de onde eu vim...eu terei que ir embora desta casa?
- Ora, mas que bobagem Felipe, é claro que não! Você já é parte dessa família desde o dia em que chegou e agora que és companheiro de Bernardo, isto seria totalmente despropositado!
- Eu te disse!
- Muito obrigado Manoel! Eu estava tão aflito com essa possibilidade!
- Pois não há com o que se preocupar! Você é e sempre será parte desta família! És um filho pra mim, em vários sentidos!

Depois que tudo havia sido esclarecido e a minha mente estava em paz novamente, eu parti com Bernardo rumo ao pasto, pois já me sentia preparado para voltar ao trabalho. Mas antes de chegarmos ao local, Bernardo me conduziu até uma lagoa localizada no meio do caminho. Nós sentamos à beira da lagoa e, como eu não entendia o motivo de estarmos ali, esperei até que Bernardo dissesse algo. E ele o fez:


- Felipe...o dia está lindo não é?
- Claro, está lindo! Por mim a gente poderia ficar apreciando a vista por horas, mas precisamos trabalhar!
- Não se preocupe...nós já vamos para o pasto, mas antes eu queria te dar uma coisa...

Conforme verbalizava ele tirou de um dos bolsos um cordão com um pingente e, sorrindo tão lindamente quanto sempre o fazia, o estendeu para mim segurando em ambas as mãos.

- O dia não podia estar mais perfeito do que hoje para eu poder te dar esse presente! Assim como esse sol refletindo nesse lago, você iluminou a minha vida de uma maneira sem precedentes! Este pingente representa você, pois pra mim o seu símbolo será sempre o sol, pois és majestoso e, ao mesmo tempo, generoso! Você tem brilho próprio e, por onde passa, ilumina a vida das pessoas!


Como de costume, Bernado me deixou sem palavras e/ou reação, mas isso não estragou o momento, pois ele se inclinou e colocou o cordão em meu pescoço. Ao terminar ele me beijou e nós ficamos tão envolvidos que simplesmente nos deitamos na relva, de uma forma cada vez mais intensa. Porém, repentinamente, Bernardo, interrompeu o processo, antes mesmo que ele ficasse ainda mais intenso. Então, finalmente, rumamos para o pasto e, quando eu estava descendo do cavalo no local, Bernardo me disse algo antes de irmos, efetivamente, trabalhar:

- Eu te amo! Hoje não poderei ficar com você, mas volto em breve!
- Tudo bem Bernardo, eu ficarei bem! Te aguardo ansiosamente!

Enquanto Bernardo estava na cidade comercializando os produtos advindos das ovelhas, eu tentei me concentrar no meu trabalho de condução e selecionamento das ovelhas, que aliás eu desempenhava cada vez melhor, mas eu, absolutamente, não me focar totalmente, pois vinha à minha mente, constantemente, as imagens dos momentos felizes que Bernardo vinha me proporcionando e na sensibilidade com qual ele  os conduzia, então aquelas três palavras fizeram sentido vindas de mim também, tanto que, quando Bernardo chegou, eu o abracei fortemente e as pronunciei, quase gritando:

- EU TE AMO!
- Felipe...eu...nossa! É tão bom ouvir isso de você, que eu fico quase sem saber o que dizer!
- Não diga nada, apenas saiba que estas palavras são genuínas e você é o único homem que já as ouviu vindas de mim!

Depois de ouvir isso, uma brilho surgiu nos olhos de Bernardo, deixando-os ainda mais lindos, assim como um sorriso no canto dos seus lábios que expressava a sua felicidade. Então, ele fez algo, ao mesmo tempo, lindo e inesperado: se ajoelhou perto de mim, segurou minha mão direita e fez a seguinte pergunta:

- Você, Senhor Felipe, me dá a honra de te conduzir até em casa?

Eu ri da situação, mas também entrei no personagem e respondi:

- É claro Senhor Bernardo! Nada me deixaria mais contente!

Nesse clima, seguimos para casa. Quando chegamos lá, jantamos com o resto da família, conversamos sobre o dia de cada um e eu não podia deixar de me sentir a pessoa mais feliz do mundo, afinal aquela família me fazia sentir incluso e o meu namorado era incomensuravelmente romântico e sensível.
Depois do jantar, Bernardo me conduziu até meu quarto e, antes que ele fosse embora, eu pedi que ele ficasse comigo. Ele aceitou e se deitou comigo, então conversamos sobre diversos aspectos da nossas vida até então desconhecidos para ambos, como a nossa infância.
Antes de dormirmos, naturalmente, nos abraçamos, nos beijamos e trocamos carícias. Nesse momento o processo se intensificou novamente, e, mais uma vez Bernardo o interrompeu, porém, desta vez, ele me disse o porquê:

- Felipe...acho que nós precisamos conversar sobre isso...
- Se você não quiser a gente não precisa levar isso adiante, não há problema algum!
- Bem...eu realmente quero...você não sabe o quanto eu estou te desejando nesse momento! Mas eu prefiro esperar até depois que nós tivermos um compromisso ainda mais sério!
- É claro Bernardo, como eu disse, não há problema! Mas o que seria um compromisso mai sério?
- Bem...casar, não é óbvio?
- Espera...nós...
- O que foi...Você não quer?
- Não...É claro...Digo, a gente pode fazer isso?
- Claro, quando duas pessoas se amam muito, elas se casam!
- Desculpa Bernardo, não me entenda mal, eu não sabia que nós podíamos fazer isso! Nada me faria mais feliz do que ter um laço ainda mais forte com você!
- Ainda bem, eu realmente cheguei a pensar que você não queria! E você realmente não se importa se esperar até depois da cerimônia para consumarmos esse desejo? Desculpe, mas eu levo muito a sério o preceito de consumar apenas depois do casamento.
- Não, eu com certeza esperarei! Ansiosamente, mas esperarei!

Nós rimos bastante da minha última fala, então nos aconchegamos para podermos dormir.

- Você ainda quer que eu durma aqui com você?
- Claro! nem ouse me deixar sozinho!
- Tudo bem, estarei aqui ao seu lado!
- Antes de dormirmos, posso perguntar uma coisa?
- Sim, pergunte!
- Se você leva aquele preceito tão a sério, quer dizer que você...nunca...nunca consumou um relacionamento?
- Bem...não! Isso é muito estranho pra você!
- Não! Na verdade eu estava pensando se, a partir do que eu te contei, não te incomoda o fato de eu já ter tido essa prática há bastante tempo?!
- Ora, você não me parece nenhum pouco com aquela pessoa, então não me importo com o seu passado. Nossos preceitos são um pouco diferentes, mas quem sabe podemos aprender muitas coisas dividindo nossas crenças um com o outro.
- Sabe Bernardo, quando eu penso que você não pode ser mais perfeito, você abre a boca e me surpreende!
- Eu te amo!
- Eu também te amo! Boa noite!

Depois desse dia perfeito, eu comecei a me sentir cada vez mais a vontade naquela casa e realmente me sentia parte daquela família. Com o passar dos dias eu e Bernardo começamos a circular pela cidade como um verdadeiro casal, primeiramente, porque nós estávamos nos apaixonando cada dia mais e, segundo, porque não havia nada naquele bendito vilarejo que me fizesse temer a reação das pessoas a esse fato. Além disso, ele passou a dormir quase todas as noites comigo em meu quarto, sendo que, com inegável esforço da minha parte, não houve nenhum tipo de relação sexual nesse período. Depois de dois meses, quando o pai de Bernardo percebeu esse fato, ele propôs que nós convivêssemos no mesmo quarto.
Em suma, tudo estava indo perfeitamente bem para mim naquele pequeno vilarejo, porém, como a vida é semelhante ao mar, que da calmaria pode passar à agitação com ondas violentas, algo mudou alguns meses depois: enquanto eu e Bernardo andávamos na principal rua do vilarejo, avistamos dois homens trajando vestes pomposas, as quais eu tive a impressão de já ter visto, recolhendo pequenos sacos de algumas pessoas, nos quais eu desconfiei haver dinheiro.
A princípio pensei que a minha impressão sobre aquelas pessoas pudesse ter sido apenas uma confusão, porém, mais a frente, eu perceberia a importância de se valorizar aquilo que foge aos olhos mas sensibiliza os outros sentidos, ou seja, algo pressentido inconscientemente. Neste dia nós seguimos o nosso caminho em direção à casa de Arthur, o senhor para quem Bernardo vendia lã e que tinha feito as minhas primeiras roupas.

- Bom dia Bernardo...Felipe! Como estão os rapazes?
- Estamos muito bem Arthur! Aqui está a encomenda de lã, como de costume.
- Ah sim! Espere um instante que eu vou buscar o dinheiro!
- Não precisa Arthur, na verdade nós queremos encomendar várias roupas em troca disso! Podes tirar as medidas para as minhas e do Felipe agora e depois o resto da família vem para que possas tirar as deles também.
- Claro Bernardo, farei isso com muito gosto! Então vocês dois podem entrar!

As roupas que nós formos encomendar eram para o noivado de Luíz e Henrique, que seria oficializado dentro de três meses. Toda a cidade fora convidada para o evento, que aconteceria no salão de festas da igreja.

- Então quer dizer que o Luíz vai casar?! mas ele não é muito novo pra isso? ainda tem tanta vida pela frente!
- Bem Arthur, os dois estão namorando há dois anos e a relação vem amadurecendo ao longo desse tempo, então eles decidiram levar isso a um nível mais sério de comprometimento.
- Sob essa perspectiva, você tem razão Bernardo! Mas e vocês dois, também estão pensando em casar?
- Por enquanto não! certo Felipe?!
- Realmente ainda não estamos pensando nisso, mas quem sabe daqui a alguns anos também!
- Desde a primeira vez que vocês vieram aqui eu sabia que algo ia acontecer entre os dois!
- Desde que vi ele pela primeira vez, eu também sabia que algo DEVERIA acontecer entre a gente!
- Que bom que aconteceu né?!
- Fico feliz por você dois, principalmente depois do Estevão...
- Não vamos falar disso Arthur! Por favor...
- Tudo bem...o que eu queria dizer é que, às vezes a gente encontra alguém especial só depois de passar por uma situação difícil...olha o meu caso, eu encontrei o Rodolfo depois de ter passado por momentos muito turbulentos!
- Que bom que vocês se encontraram então! Espero que esse seja o nosso caso, né Bernado?
- Com certeza!

Depois de ter encomendado as roupas para o noivado de Luíz nós caminhamos até a praça da cidade e permanecemos lá durante um bom tempo. Posteriormente, voltamos para casa e dormimos juntos. Há algum tempo, todas as vezes que dormimos juntos, as carícias e os beijos vinham se tornando cada vez mais intensos, mas Bernardo continuava firme em suas convicções e eu realmente não me importava de não poder ter esse tipo de prazer com ele ainda, pois a simples presença dele me fazia sentir pleno.
No outro dia, enquanto tomávamos café, alguém bateu à porta e Manoel foi atender. Quando voltou mencionou a presença de dois homens cobrando impostos e, enquanto ia buscar o dinheiro disse:

- Eu me esqueci que nessa época do ano eles vêm coletar os impostos!

Quando voltou e entregou o dinheiro aos homens, estes solicitaram averiguar quantas pessoas moravam na casa, então todos nos dirigimos à sala para a verificação.

- Na última verificação constava que apenas seis pessoas viviam nesta casa, porém aqui estão sete pessoas. Quem se juntou à família?
- Este rapaz é namorado do meu filho e está morando conosco atualmente!
- Como se chama e de onde veio rapaz?
- Meu nome é....
- Não há necessidade dessas formalidades agora...em breve iremos à sede do reino para registrá-lo como morador desta cidade.
- Bem...nesse caso vocês tem até o próximo ano para efetuar o registro, caso contrário precisarão pagar uma multa por abrigar estrangeiros ilegalmente.
- Com certeza providenciaremos isso até o próximo ano.
- Muito bem...nesse caso nós iremos embora. Tenham um bom dia!

Mais uma vez, por obra do acaso, informações importantes relacionadas ao local de onde eu vim foram ocultadas. Porém, este mesmo acaso viria, em breve, desvelar estas informações. Nesse momento a calmaria sofreu uma leve agitação, pois eu não conseguia tirar a impressão de familiaridade que aqueles rapazes me traziam, embora eu tenha ignorado este sentimento anteriormente.
Porém, momentaneamente, a história da minha vida ainda caminhava, alheia a outros acontecimentos, para o noivado de Luíz, que estava radiante. Este me convidou para organizar junto com ele a festa, portanto eu pedi para ser dispensado do trabalho no pasto para que pudesse me dedicar aos preparativos. Como sempre, Manoel e Bernardo foram muito amáveis e compreensíveis quanto a isso.
Desse modo, durante os três meses seguintes eu auxiliei Luíz na tarefa de organização do noivado, providenciando enfeites, convites, comida, bebida, entre outros detalhes, incluindo a confirmação da presença dos convidados.
Quando o grande dia chegou, a cidade inteira estava na festa, que transcorreu como o esperado. Nesse sentido, é importante destacar que a felicidade coletiva direcionada para aquela união homoafetiva me emocionou muito, pois, apesar de viver há algum tempo naquela cidade de preceitos tão abertos, eu ainda me comovia com a aceitação daquelas pessoas.
Os noivos também quase não conseguiam conter a felicidade e, nesse clima de festivo e feliz, os dois deram um passo importante na caminhada da vida, o qual seria concretizado dali a um ano, quando, de fato, o casamento ocorreria.
Depois que a festa havia acabado e nós retornamos para casa, Luíz veio me agradecer pela contribuição a festa:

- Felipe, muito obrigado pela sua ajuda na organização da festa! Tudo saiu como eu esperava hoje e eu não poderia estar mais feliz! Eu gosto de ti desde que chegastes a esta casa e sempre te considerei um segundo irmão, porém nesse período me mostrastes que eu realmente posso contar contigo.
- Pode ter certeza que podes contar comigo Luíz! Sempre que precisares é só me chamar que eu estarei à disposição! Como eu sempre disse, me sinto acolhido por essa família e sempre te considerei um irmão também, mas além disso, tu tens um papel fundamental na minha relação com o Bernardo, que me faz tão feliz, pois se não tivesses me alertado sobre os sentimentos dele e me apoiado, talvez nós não estivéssemos juntos.
- Que bom que está assim feliz Felipe! e eu considero que o Bernardo também esteja da mesma forma! Sendo assim, eu espero que daqui a algum tempo sejam vocês dois a subir naquele altar e consagrarem um laço de amor eterno! O Bernardo merece isso depois de tudo o que ele passou com o Estevão!
- Luíz, quem é esse sujeito? o Arthur também mencionou ele há algum tempo, mas o bernardo não quis falar sobre o assunto.
- Olha Felipe, eu não sei se eu deveria te contar, já que o Bernardo não o fez, mas acho que também tens o direito de saber do passado dele, afinal ele sabe tanto do teu, certo?
- Pensando por esse lado...
- Bem, mas eu só posso te contar amanhã, tudo bem?! porque hoje eu estou muito cansado e preciso dormir imediatamente!
- É claro Luíz! podes me contar isso amanhã...agora vai dormir que eu imagino o quanto deves estar cansado! Boa noite!
- Boa noite!

Depois de ouvir aquele nome ser mencionado mais de uma vez, eu fiquei muito curioso sobre o papel do sujeito denominado Estevão na vida de Bernardo, e estava ansioso para que Luíz esclarecesse essa história para mim no outro dia.
Além disso, mesmo passado algum tempo, eu ainda não conseguia me esquecer da impressão que havia tido em relação àqueles homens que coletaram impostos há alguns meses atrás, até que, enquanto estava deitado na minha cama refletindo sobre isso, eu consegui lembrar de onde eu os conhecia, e apenas uma palavra me veio à cabeça: Heliópolis.
Eu não recordei exatamente daqueles rapazes em si, mas de fato lembrei que aquelas vestimentas que ambos usavam eram típicas dos servos de Heliópolis, por isso eu deduzi que eles pertenciam ao meu antigo reino. A minha dúvida era a ligação entre aquele vilarejo e Heliópolis, mas como já estava tarde e eu, tal como Luíz, estava cansado por causa da festa de casamento, resolvi esperar até o outro dia para tentar compreender melhor este fato, quando os meus pensamentos estariam mais claros.
Porém, no outro dia a minha outra preocupação prevaleceu: eu disse a Bernardo que faltaria ao trabalho somente mais aquele dia e retornaria no dia seguinte às minhas funções no pasto. Assim, enquanto ele estava fora, eu pedi que Luíz finalmente me contasse a história de Bernardo com Estevão. Então, como ele havia me prometido no dia anterior, ele contou:

- Felipe, vou tentar ser o mais claro e sucinto possível! Há cerca de um ano atrás o Bernardo estava namorando com um rapaz chamado Estevão, que foi o primeiro e único amor da vida do meu irmão, antes de você é claro. Porém, certa vez, quando estava no centro da cidade passeando com o Henrique, eu ouvi alguns rumores que não julguei de fato verdadeiros, embora os tenha contado a Bernardo por precaução. Estes rumores referiam que Estevão estaria se encontrando com uma mulher da cidade, todas as tardes, no mesmo horário. Dessa forma, foi relativamente fácil para ele averiguar o fato, que infelizmente se revelou verdade.
- Então o Bernardo foi traído por esse tal sujeito?
- Infelizmente sim! Mas o mais preocupante foi o estado em que meu irmão ficou depois de descobrir este fato: primeiro ele teve um acesso de raiva muito intenso e agrediu o Estevão, o que o levou a ser preso, porém, graças a Deus ele foi solto alguns dias depois sob pena de prestar serviços não-remunerado para a cidade. Depois disso, ele entrou em um estado de profunda tristeza, a tal ponto que quase não falou nada durante alguns meses, embora tenha continuado trabalhando normalmente.
- Nossa, eu não fazia ideia! Eu não imagino o Bernardo agredindo ninguém!
- Mas isso realmente não é algo que o meu irmão fazia ou faria novamente! Foi algo totalmente isolado e incomum, por isso que ele foi solto alguns dias depois! As pessoas da cidade o conhecem há muito tempo e sabem que isso não é típico dele!
- Claro! Na verdade o que eu sempre admirei no Bernardo é o fato de ele ter porte físico para se sair mais do que bem em uma luta, mas ainda assim sempre mostrar o seu lado mais gentil em tudo o que ele faz! Mas e esse tal Estevão? Ainda vive aqui?
- Não, porque além de ter irritado o Bernardo, esse sujeito também enfureceu o marido da mulher com quem ele estava tendo um caso. Então, segundo comentários que eu ouvi sobre o assunto, ele teve que fugir mais do que depressa da cidade levando em sua companhia a tal mulher, pois o marido dela jurou que se encontrasse os dois, mataria a ambos e a si mesmo!
- Nossa! e nunca mais se ouviu falar dele?
- Não que eu saiba!
- Muito obrigado Luíz! eu estava aflito pra saber qual o papel desse sujeito na vida de Bernardo e pelo que vejo não foi nada positivo.
- Nem um pouco Felipe! Na verdade ele fez muito bem ao Bernardo logo no início, pois o meu irmão sempre foi muito fechado desde quando ele era um garoto e nós conseguíamos ver a felicidade no rosto dele enquanto eles estavam juntos. Isso durou quatro anos Felipe e, no geral, durante todo esse tempo fez muito bem a ele, que passou a ser mais aberto e espontâneo, embora no final ele tenha deixado, simbolicamente, uma ferida que ainda está cicatrizando no coração do meu irmão.
- E nesse período depois do término ele não se envolveu com mais ninguém?
- Não! e não foi por falta de pretendentes, porque o meu irmão sempre foi cobiçado tanto pelos rapazes como pelas moças desta cidade! Mas lá no fundo ele não queria, não precisava e não estava preparado pra se relacionar com mais ninguém! Bem...no dia em que você apareceu algo mudou e nós percebemos isso de pronto quando ele entrou por aquela porta naquele dia. Por isso eu fui tão direto em te sensibilizar para a possibilidade dele gostar de você!
- E eu te agradeço imensamente por isso! Bem, acho que eu já tomei muito do teu tempo, afinal hoje é o teu primeiro dia de casado, certo? Muito obrigado novamente por dispor do teu tempo pra me contar essa história!
- Não se preocupe com isso! Pode sempre contar comigo Felipe!

O Luíz se tornou meu melhor amigo e confidente naquela casa, em muitos aspectos até mais que Bernardo, pois eu sempre recorria a ele em momentos de insegurança ou dúvida e ele sempre se fazia disponível pra acolher as minhas demandas.
Quando Bernardo chegou em casa, nós jantamos todos juntos, como de costume, porém, depois disso Luíz pediu que ele conversasse a sós com o irmão, então eu me dirigi para o meu quarto e fiquei esperando por Bernardo. Após algum tempo, eu percebi uma elevação no tom das vozes então saí para averiguar e, quando me dirigia para a sala, esbarrei com Bernardo no corredor, que estava bastante alterado.

- Bernardo...o que aconteceu?
- Acho melhor nos irmos para o quarto!!

Eu nunca tinha visto Bernardo daquele jeito, então, quando chegamos no quarto, eu prontamente o questionei novamente sobre o motivo da exaltação.

- O que está acontecendo Bernardo? Era você quem estava gritando?
- Felipe...o Luíz veio conversar comigo há pouco e me disse que lhe contou sobre o Estevão...
- Sim, é verdade! Mas eu o pedi que me contasse, ele não fez isso por maldade!
- ELE...ele não tinha o direito de te contar algo que eu não queria que você soubesse sobre a minha vida! e você não deveria ter ido pedir a ele que lhe contasse se sabia que eu não queria lhe contar a respeito!
- Mas eu só queria...
- Felipe, eu te amo muito, mas eu estou imensamente desapontado e entristecido. Eu me excedi ainda há pouco com o Luíz e pedirei desculpa a ele amanhã, mas não quero fazer o mesmo com você, então eu peço que compreenda que eu prefiro dormir no meu antigo quarto essa noite.

Ao ver Bernardo deixar o nosso quarto naquela noite eu fiquei muito triste, tanto que chorei antes de dormir. As minha intenções eram as melhores quando eu incentivei o Luíz a me contar aquela história e nunca imaginei que isso deixaria Bernardo tão furioso.
No outro dia, durante o café da manhã, ele de fato pediu desculpa a Luíz, assim como a todos da família, pelo modo como havia se excedido. Porém, eu senti que ele ainda não havia me perdoado por ter agido pelas suas costas e isso me deixou visivelmente mais introspectivo.
Quando partirmos em direção ao pasto, como eu tinha me comprometido no dia anterior, eu não consegui começar nenhuma conversa com ele, não por raiva ou mágoa, mas por medo de que ela ainda estivesse triste comigo. Para minha surpresa, quando estávamos no meio do caminho, ele fez sinal para que parássemos, então, em um só movimento, ele caminhou até mim, me segurou em seus braços e me beijou. Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, ele disse:

- Desculpa...desculpa...eu não sei o que aconteceu comigo ontem! Você é tão especial pra mim e eu te tratei muito mal! Mas é que eu passei tanto tempo triste pelo que aconteceu com o Estevão que eu desenvolvi um sentimento negativo em relação a esse fato, além disso, a possibilidade de você me ver como alguém fraco que foi traído e agiu de uma maneira tão vergonhosa me deixou com tanto medo que eu fiquei confuso e acabei maltratando as pessoas que eu gosto. Eu só precisava ficar sozinho pra me acalmar e me reorganizar emocionalmente! Você me perdoa?
- Mas é claro! Na verdade sou eu quem precisa pedir desculpas, pois só estava tentando entender um pouco mais sobre você e não me preocupei em pensar se isso te deixaria triste, tal como deixou. Além disso, eu realmente fiz tudo isso pelas suas costas e reconheço agora que uma relação deve ser aberta, então me desculpe por isso e eu prometo que não vai se repetir!
- Graças e a Deus que eu não te machuquei a ponto de te perder. Felipe, você foi realmente a minha salvação! Eu preciso te contar essa história do meu ponto de vista, pois tem detalhes que o Luíz desconhece.
- Se você não se importar em chegar mais tarde ao pasto eu não adoraria ouvir.
- Não se preocupe com isso, vai ficar tudo sob controle até a nossa chegada.
- Então me conte a sua história com o Estevão.
- Bem, como o Luíz deve ter te contado eu estava muito apaixonado por este rapaz de nome Estevão e, inclusive, eu planejava me casar com ele. Nós namoramos por cerca de quatro anos e, há cerca de um ano atrás, eu o pedi em casamento, porém, exatamente dois dias após o pedido o meu irmão me contou alguns boatos que circulavam pela cidade, os quais você já sabe. A parte mais triste e vergonhosa disso é que naquele dia eu agi de um modo que eu nunca imaginara ser capaz e que quase me custou a vida, pois, se naquele acesso de raiva eu tivesse matada algum dos dois traidores, eu teria sido sentenciado ao enforcamento, já que este vilarejo é muito severo com homicidas.
- Eu não saiba desses detalhes! Mas ainda bem que você não fez isso e que este vilarejo conhece a sua índole.
- Realmente! Mas isso apenas salvou a minha vida de ser exterminada pelas mãos da sociedade e não da dor e do remorso que me assolaram durante todo o tempo que se seguiu após esse acontecimento. As lembranças dos momentos bons que eu vivi com ele em contraste com o patife que eu flagrei tendo relações sexuais com aquela mulher me levaram a um estado de profunda apatia, pois eu não conseguia ter vontade de comer ou dormir, simplesmente e mecanicamente saia para trabalhar e fazer as minhas tarefas, mas somente porque isso me fazia sentir algo: cansaço e dor pelo esforço físico. A vergonha por ter agido de forma tão descontrolada também me fez ficar nesse estado.

Nesse momento, eu vi algo que ainda não tinha presenciado em relação a Bernardo, ele estava chorando e se jogou no meu colo. Eu prontamente o acolhi e não disse nada até que ele estivesse pronto para falar novamente, apenas o mantive envolto pelos meus braços e passei a beijar o topo da sua cabeça. Após alguns segundos ele se recompôs e continuou:

- O que ninguém, além de você agora, sabe é que algumas semanas antes de você aparecer eu comecei a planejar o meu suicídio e eu o executaria justamente naquele dia em que eu te encontrei perdido na Floresta do Leste. O fato de ver alguém ali perdido me mobilizou de tal maneira, que momentaneamente esqueci o meu propósito e voltei a minha atenção para a possibilidade de poder te ajudar a sair dali, pois aquele lugar pode ser muito perigoso. Por isso eu sempre digo que você me salvou, pois desde aquele dia algo mudou no meu coração e eu comecei a sentir algo além de tristeza e raiva. Hoje eu sinto uma paixão muito mais intensa do que a que eu um dia senti pelo Estevão e, com certeza, eu não quero que a minha vida chegue a fim, pois eu quero estar com você.
- Bernardo...meu deus! eu...eu...eu nem sei o que pensar...

Eu estava extremamente agitado, pois somente a ideia de pensar que o Bernardo poderia tirar a própria vida me deixava aterrorizado, porém, concomitantemente, ele havia feito uma declaração de amor tão linda que eu queria beijá-lo. E foi o que eu fiz! Eu o puxei em direção ao meu peito, o abracei tão forte quanto os meus frágeis braços conseguiram e, em seguida, o beijei como se a qualquer momento o mundo fosse acabar. Depois eu, ainda o segurando em meus braços, disse:

- Nunca mais pense em uma besteira dessa! O que seria da sua família sem você aqui? o que seria desse lugar, na verdade? você é o coração de tudo aqui! você é tão querido! e o que seria de mim sem nunca ter te conhecido? Graças a Deus que eu me perdi ali!

Nós rimos depois que eu pronunciei a última frase, pois eu estava tão nervoso que já não estava prestando atenção ao que eu estava dizendo.

- O que seria da MINHA vida se eu não tivesse te encontrado? Essa é a verdadeira pergunta! Eu precisava te contar isso, porque eu quero que tenhas a consciência da importância que você tem pra mim, mas hoje em dia eu jamais pensaria nisso novamente!
- Onde você iria executar o seu plano?
- Mais adiante em relação ao ponto em que eu te encontrei na floresta há um lago muito profundo, sendo que eu não sei nadar. Então eu simplesmente andaria até lá e deixaria me corpo ser tragado pela água! Eu conheço a área, pois sempre costumava caçar lá quando mais jovem.
- Bem, graças a Deus tudo teve um final diferente do que você tinha planejado!
- Sim, pois hoje não há felicidade maior do que a que eu sinto ao teu lado! Às vezes eu penso que eu tive que passar por tudo isso, simplesmente porque seu eu não passasse talvez eu estivesse trabalhando no pasto enquanto você definhava na floresta.
- Então, me desculpe, mas que bom que você passou por isso!

Nós rimos novamente e permanecemos conversando durante alguns breves minutos antes de voltarmos à nossa jornada para o pasto. Bernardo apenas me pediu que não contasse a última parte da história à sua família, já que eles nunca chegaram a ter conhecimento dos seus planos suicidas e isso apenas traria problemas se fosse revelado. É claro que eu me comprometi a não contar. Então, seguimos em direção ao pasto, com os laços renovados e fortalecidos por mais uma lembrança do passado, porém, desta vez, não era do meu.

Muitos dias se passaram desde que eu e Bernardo tivemos aquela breve discussão e nos reconciliamos, os quais foram, basicamente, compostos de trabalho no pasto - eu estava melhorando cada vez mais a minha habilidade de manejo das ovelhas com o aconselhamento de Bernardo, Manoel, pai dele, e João, seu avô -, namoro e integração familiar, pois a minha relação de amizade com Luíz e Henrique, recém-casados, estava indo muito bem e eu conseguira conhecer mais a respeito das irmãs de Bernardo, Paula e Juliana.
Entretanto, como sempre acontece quando eu estou desfrutando de algum momento feliz, algo abalou seriamente esse contexto de plenitude: quando eu e Bernardo retornamos para casa, depois de um longo dia de trabalho, encontramos a família reunida com os coletores de impostos que apareceram na casa de Manoel há alguns meses. Eu jamais poderia esquecer daqueles dois sujeitos e imaginei que, se eles tinham voltado à cidade antes do tempo determinado por eles mesmos, havia algum problema sério, de modo que logo perguntei:

- Boa Noite Família! Houve algum problema?
- Felipe, acho melhor você sentar meu filho! Receio que estes rapazes tragam más notícias!

A minha face instantaneamente perdeu a cor, as minhas mãos começaram a suar e a minha expressão logo se transformou, então me dirigi aos visitantes:

- Qual é o problema? Vocês vieram me prender?
- Não necessariamente príncipe Felipe! Mas seu pai insiste em vê-lo o mais breve possível em seu castelo!

Quando o coletor de impostos me tratou por aquele título eu fiquei surpreso, assim como as outras pessoas presentes na sala. Na verdade, há algum tempo eu vinha me questionando sobre a possibilidade de os coletores terem me reconhecido em sua visita anterior à cidade, visto que eu lembrara que os conhecia de Heliópolis, e agora confirmara minha hipótese, então formulei outra pergunta:

- Você comunicaram a meu pai que estava nesse vilarejo? Reconheceram-me na última vez em que estiveram nessa casa?
- Sim príncipe Felipe, de fato nós o reconhecemos, apesar de sua aparência ter mudado bastante. Então comunicamos ao Rei em nosso regresso a Heliópolis...

Ao ouvir aquele nome, Manoel se sobressaltou e interrompeu o coletor de impostos, se dirigindo a mim:

- Espera...Felipe, você é príncipe de Heliópolis?
- Sim Manoel, por que? Pensei que tivesse mencionado isso...
- Receio que você não mencionou meu filho e isso muda drasticamente as coisas...
- Por que Manoel? Qual o problema?
- Felipe...Luminus é um vilarejo semi-independente, porém ainda está submetido ao poder do Rei de Heliópolis! Não há como nós nos opormos a uma ordem direta, pois isto implicaria em represália para o nosso povo! Eu pensei que tivesses vindo de outro reino!
- Felipe, eu também não sabia que você tinha vindo de Heliópolis! Meu deus, o que vamos fazer agora?
- Receio que o príncipe terá que nos acompanhar imediatamente para o reino!
- Não...ninguém vai levá-lo!
- Meu rapaz, você está confrontando as ordens do Rei?
- Não! Não! Ele apenas está exaltado, acalmem-se!
- Mas Felipe...
- Bernardo, não há nada que eu possa fazer!
- Bernardo, meu filho, ele tem razão! Não há nada que possamos fazer além de obedecer!

Eu ainda estava processando aquela situação: primeiro assimilei o que Manoel dissera, pois eu realmente não sabia da verdadeira extensão do reino, de modo que não tinha conhecimento sobre os pequenos vilarejos que faziam parte da sua abrangência; segundo, eu percebi que eu nunca tinha tomado conhecimento do nome do vilarejo, apesar de estar ali há algum tempo; por fim, eu não me conformava com a submissão àquelas ordens, mas entendia que seria melhor obedecê-las, pelo bem da minha nova família. Porém, em um estalo, eu pensei algo e perguntei novamente aos coletores de impostos:

- Por que meu pai quer me ver? Eu fui banido e exilado! Na verdade, não posso voltar para o reino, segundo uma ordem do meu pai!
- Correto príncipe! Mas sua mãe, a rainha, está muito doente e ele achou melhor chamá-lo para que ela pudesse ter a chance de vê-lo, já que nós encontramos o seu paradeiro. Portanto, o seu exílio está momentaneamente revogado, inclusive o Rei já fez um comunicado oficial sobre isso á alguns dias.
- Minha mãe?! Mas o que é? qual o problema? é muito grave?
- Não sei lhe dizer príncipe, pois não entendemos desse assunto, mas o povo comenta que algo a acometeu subitamente e agora vive acamada.
- Meu Deus! Realmente eu preciso ir então!

Eu estava visivelmente abalado pela notícia, então coloquei meu rosto entre as pernas, enquanto estava sentado, o cobri com ambas as mãos e comecei a chorar. Alguns segundo depois eu senti uma mão repousar e afagar as minhas costas e eu não precisei levantar a cabeça para saber que era Bernardo, simplesmente continuei chorando, até que Bernardo se inclinou e falou ao meu ouvido:

- Eu vou com você!

De repente, um estranho sentimento de felicidade e segurança me invadiu, o que me deu forças para me erguer e abraçar Bernardo. Quando me senti ainda mais forte, eu me recompus e me dirigi novamente aos coletores de impostos:

- Posso levar convidados comigo?
- Não estou certo disso príncipe! Porém, permitirei que o senhor leve dois convidados nessa viagem.
- Muito bem, eu com certeza vou com você!
- Eu também o acompanharei Felipe!
- Agradeço o apoio Manoel! Me desculpe por não ter contado sobre Heliópolis!
- Imagina meu filho! Eu sei que não fizestes por mal!
- Meu senhor, permites que nós passemos a noite aqui, para podermos partir logo pela manhã?
- Claro, vou providenciar as instalações para vocês passarem a noite.

Após Manoel providenciar o local para que os coletores de impostos passarem a noite, cada um se dirigiu para o seu quarto e foi dormir. Porém, quando estávamos a sós em nosso quarto, eu ainda queria conversar com Bernardo.

- Muito obrigado por me acompanhar nessa viagem Bernardo! Acho que ela vai ser bem difícil por inúmeros motivos e você sempre é um porto seguro pra mim!
- De nada! Eu nunca te deixaria ir sozinho nessa viagem, nem que eu tivesse que ir preso te acompanhando!

Nós rimos daquilo e era realmente muito bom poder descontrair um pouco depois de tantas reviravoltas que aquele dia trouxe. Depois de um tempo eu continuei a falar:

- E...desculpa se eu só trago dor de cabeça pra sua família! Acho que estou sob algum tipo de feitiço que atrai coisas ruins!
- Não diga isso! Eu já te disse quantas coisas boas você me trouxe! Vou precisar repeti-las?
- Acho que não! Mas que deve ter algum tipo de feitiço eu não duvido!
- Só se for algum tipo de poção do amor digna de Afrodite, porque eu estou completamente louco de amor por você!

Depois que Bernardo disse isso ele se atirou sobre mim e me envolveu com seu corpo em um abraço, depois me beijou e passou a acariciar meus cabelos. Então, mudando sua expressão para um tom mais sério, ele disse:

- Não se preocupe com essa viagem! Eu vou estar do teu lado pra te proteger o tempo todo! Além disso, a sua mãe vai se recuperar com certeza! Por um lado, essa convocação é relativamente benéfica, pois demonstra que seu pai consegue sobrepujar o que ocorreu por uma causa maior!
- Olhando por esse lado, você tem razão! Talvez a minha sorte esteja mudando!

Em pouco tempo eu e Bernardo caímos no sono e no dia seguinte estávamos preparados para enfrentar a longa viagem ao palácio em Heliópolis. Antes disso, os outros vieram se despedir de nós, começando por Paula:

- Boa sorte nessa viagem pra vocês! Espero vê-los em breve! Tomem cuidado na estrada!
- Eu também desejo boa sorte! Espero que tudo se resolva com os teus pais Felipe!
- Muito obrigado Juliana, eu também!
- Meus filhos, que Deus os abençoe! Voltem o mais breve possível!
- Muito obrigado minhas filhas e meu pai! Voltarei em breve, tenham cuidado aqui em casa e avisem aos comerciantes que o fornecimento dos materiais vai atrasar alguns dias.
- Pode deixar meu pai! Nós faremos isso!
- Muito bem, acho que podemos partir, certo?
- Certo! Até mais!
- Até mais família!
- Até mais!

A partir desse momento, saímos em uma viagem que desencadearia muitos fatos importantes no meu futuro. Por ora o que eu sabia era que minha mãe estava muito doente e eu precisava vê-la, embora ainda tivesse um mal pressentimento sobre retornar ao local onde eu fui exilado e humilhado perante todo o povo por meu pai. De qualquer modo, a presença de Manoel e Bernardo me deixava mais tranquilo.
Durante a partida, uma pergunta me vinha constantemente à mente: será que o meu pai, de algum modo, mudou os seus ideais sobre o relacionamento homossexual e reconheceria a genuinidade dos pressupostos que Manoel sustentava sobre o assunto, bem como aceitaria a minha relação com Bernardo? Ou será que nada tinha mudado e eu estava colocando em problemas duas pessoas que eu tanto amava?

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