quarta-feira, 5 de março de 2014

Capítulo 4 - Heliópolis: Minha Ascensão e Minha Queda (Cont.)

Conforme nos aproximávamos do quarto real, eu percebi um tom exaltado de voz, que deduzi ser do meu pai e, quando atingimos o aposento, presenciei o rei de Heliópolis vociferando:

- COMO ELE OUSA INFLUENCIAR OS MEUS OFICIAIS!

Quando ele percebeu que eu adentrara o quarto, o rei se virou para mim e exclamou:

- Ah sim...aí está ele!
- Aconteceu alguma coisa pai?
- E ainda tem o disparate de perguntar...sim meu filho! Aconteceu alguma coisa! Imagina que eu estou subindo as escadas e ouvi um barulho estranho em um dos aposentos do castelo, então fui averiguar e, quando abri a porta, encontrei os meus dois oficias de maior confiança, os quais eu mandei pessoalmente buscarem você em Luminus, ao beijos e seminus!

Eu senti um aperto no estômago e percebi que ele se referia a William e Tomás, porém não queria deixar transparecer que já sabia daquilo, então disse:

- Mas o que isso tem a ver comigo? Quero dizer...vocês estavam falando de mim quando eu entrei...certo?
- Sim...nós estávamos meu filho...bem...seu pai acha que o comportamento dos oficiais tem alguma relação com o tempo que passaram lhe trazendo de Luminus...mas não creio nessa hipótese!
- Eu creio nisso! Você deve ter lhes incutido essas ideias estranhas de comportamento que vinha praticando aqui dentro do castelo antes de ser exilado!
- Meu pai, eu lhe afirmo que não lhes incuti qualquer ideia que seja, alias nós nem conversamos apropriadamente, fora durante as refeições, pois seguimos caminho em cavalos diferentes e nos instalamos em quartos diferentes durantes as estadias em outras cidades! Bernardo e Manoel podem confirmar!

Meu pai olhou para os dois, que apenas confirmaram com gestos de cabeça. Porém, isso não o impediu de continuar:

- Bem...ainda que não tenha tido uma influência direta, aposto que a sua volta triunfal do exílio levou estes homens a pensar que podem se comportar dessa maneira em meu reino. Mas eles estão muito enganados, pois se você não os influenciou diretamente, então eles estavam enganando o rei debaixo do próprio teto...tendo estas praticas abomináveis! O que torna o crime ainda mais grave!
- Pai, eu não acho...
- Mandarei prendê-los nas masmorras e prepararei sua execução para amanhã!
- Meu rei...seja razoável! William e Tomás são os oficiais mais eficientes e dedicados que já tivemos em muitos anos! Além disso, nós já conversamos sobre esse assunto, lembra? Você prometeu que iria procurar entender o caminho que nosso filho tem que trilhar!

Por um momento, minha mãe olhou diretamente para mim, sorriu, então olhou para Bernardo e depois voltou a fitar o meu pai, dizendo:

- Você refletiu sobre isso?
- Carmen, meu amor, não posso hesitar em punir algo tão deplorável! Oficiais são fáceis de se encontrar e...bom...quanto ao Felipe...ele é nosso filho...embora eu não aprove esse caminho...ele é nosso filho.

Aquela afirmação me deixou, estranhamente, feliz, pois, embora eu ficasse triste pelo fato do meu pai ainda achar que gostar de alguém do mesmo sexo é deplorável a ponto de executar dois dos seus melhores oficiais, era reconfortante saber que ele ainda me considerava seu filho.
Naquele momento, para minha surpresa, Manoel interveio na conversa:

- Com a sua licença Vossa Majestade...não que eu queira me intrometer nos assuntos reais, mas eu acho que não há necessidade de punir os seus oficias por gostarem um do outro, afinal eles não estavam matando, roubando ou torturando ninguém...apenas estavam demonstrando carinho um pelo outro.
- Desculpe-me senhor...mas não aceito receber conselhos de alguém vindo daquele povoado...
- O que quer dizer com isso Vossa Majestade?
- Ah, não pense que eu não sei o que ocorre naquele povoado! Os meus oficiais me matem informado do "estilo de vida" que vários dos seus habitantes vem tendo! Mas eu faço vista grossa para isso, unicamente porque Luminus é um vilarejo que contribui muito com o reino!
- Bom, com todo respeito Vossa Majestade, meus conterrâneos não fazem esforço algum  para esconder o nosso "estilo de vida"!
- Mas que insolência! Vem ao meu castelo me dizer que o seu povo não está preocupado em seguir as leis do rei?!
- Claro que não Vossa Majestade! Mas, como o senhor deve se lembrar, Luminus é um vilarejo que goza de certa autonomia em comparação ao resto dos vilarejos que estão submetidos ao Reino de Heliópolis! Nesse sentido, os habitante de Luminus não veem problema no fato de dois homens ou duas mulheres formarem um casal, inclusive dois dos meus quatro filhos optaram por esse "estilo de vida", como o senhor disse.
- Isso é o suficiente! Vou mandá-lo prender agora mesmo por desrespeitar o rei e por infringir a lei que proíbe esse "estilo de vida"!
- Otávio!
- Não pai! Por favor, não o prenda!
- Felipe, isso é necessário para manter a ordem no reino!
- Mas pai, ele...ele é minha família também!
- Não seja tolo Felipe! Esse senhor o abrigou por algum tempo, mas nós é que somos sua verdadeira família!
- Pai...ele é meu sogro...
- Sogro...mas com quem você se envolveu nesse tempo em que esteve longe?

Nesse exato instante, meu pai olhou para Bernardo, que tinha uma expressão apreensiva no rosto, então exclamou:

- Ah...claro! Viu Carmen? Como posso mostrar um exemplo ao meu povo, se meu próprio filho não segue a lei?
- Otávio...pense no que eu lhe disse! Vamos abolir essa lei!
- O senhor pode fazer isso?
- É claro que posso! Eu sou o rei! Mas isso é irrelevante, pois eu sou adepto dos velhos costumes que consideravam esse tipo de comportamento uma abominação!
- Meu pai...se o senhor pode fazer isso...por favor, faça! Ou terá que me banir novamente, pois eu não mudarei meu "estilo de vida"!
- Felipe! Por que me colocas nessa posição? Você é meu único filho e sabes muito bem que eu não quero te banir para fora de Heliópolis! O que você ganha se envolvendo com esse mero camponês meu filho?
- Pai...
- Vossa Majestade! Eu amo o seu filho!

A atitude de Bernardo surpreendeu tanto ao meu pai quanto a mim, porém, rapidamente, o rei se recompôs e retrucou:

- Cale a boca camponês! Não ouse dizer baboseiras no meu castelo!
- Mas é verdade Vossa Majestade! Eu o amo e estaria disposto a ser banido com ele se fosse preciso!
- Bernardo...isso...
- Meu querido, aproxime-se para que eu possa falar com você!

Minha mãe olhava com ternura para Bernardo quando este se aproximou do leito, então continuou:

- Somente alguém que ame muito o meu filho realmente teria a ousadia de enfrentar o rei, que pode tanto bani-lo como mandar executa-lo, como está cogitando fazer com os dois oficiais!
- Eu de fato o amo Vossa Majestade! Não me vejo vivendo sem ele desde que o encontrei pela primeira vez!
- Que lindo! Era disso que eu estava falando felipe...amor verdadeiro!
- Carmen! Não incentive esse comportamento!
- Otávio...você se lembra o que o seu pai me disse, quando nos casamos? Que o nosso casamento era uma estratégia para trazer as tropas do meu reino pra dentro do seu, a fim de, quando tivesse conquistado a sua confiança, destruí-lo? Você concordou com ele?
- Evidentemente que não! Mas você é uma mulher e eu sou um homem, como tem que ser!
- Quem disse que precisa ser assim?
- Deus querida! Ele disse isso!
- Ele não disse isso pra você ou pra mim! Há somente alguns escritos que dizem que um homem  escreveu a partir do que ouviu dele, mas quem pode provar que esse homem não foi parcial em suas anotações ou que ele, simplesmente, não é doido?!
- A senhora está certíssima Vossa Majestade! Em Luminus nós glorificamos e Louvamos aos Senhor todos os dias e vários de nossos mais veementes religiosos tem um "estilo de vida" como o do seu filho! Inclusive, um dos meus filhos se casou há algum tempo com o companheiro em uma cerimônia religiosa celebrada por todo vilarejo!
- Viu Otávio! Perceba como alguns preceitos precisam ser mudados! Mude essa lei, por amor a seu filho e...por amor a mim! Lembra quando fizemos nossos votos? Amor acima de tudo! E olha o quão próspero tem sido o nosso reino sob essa premissa!
- Por favor pai!
- Tenho certeza de que o senhor é sábio para perceber que essa é a melhor alternativa!
- Com certeza Vossa Majestade!

Meu pai se calou, andou algum tempo pelo quarto, sendo acompanhado pelos olhos atentos das outras pessoas presentes no quarto, então deu um longo suspiro e disse:

- Muito bem Carmen, você venceu! Reconheço que o amor tem sido o nosso caminho desde sempre! Eu mudarei a lei, mas farei algumas restrições a esse comportamento relacionadas ao pudor e coisas afins! Farei o anúncio amanhã!

Todos os que estavam presentes no quarto, exceto meu pai, soltaram gritos de vivas e eu dei um forte abraço em Bernardo. Depois, virando para meu pai, disse:

- Muito obrigado pai!
- Não me agradeça Felipe! Eu de fato não concordo com isso que você escolheu para si, mas se a sua mãe não vê problemas eu me resigno a conviver com isso...agora eu vou providenciar os pormenores da mudança da lei.

Dito isso meu pai se retirou do local e eu fiquei conversando com a minha mãe, que estava muito animada em conhecer, como ela mesma se referira, um homem tão esclarecido como Manoel e um jovem tão corajoso como Bernardo. Passamos várias horas conversando sobre a vida em Luminus, tanto os aspectos que eu conheci quando estive lá quanto aqueles que eu nunca tomei conhecimento, relacionados a fatos e pessoas que viveram/vivem no vilarejo.
Depois de algum tempo, percebi que minha mãe estava mais ofegante e deduzi que ela estivesse cansada, então propus que fossemos para nossos quartos e a deixássemos descansar, o que foi assentido por Manoel e Bernardo.
No outro dia, eu acordei com o barulho causado por uma serva que tropeçara enquanto abria as cortinas do meu quarto. Depois de ajudá-la a se recompor, ela me informou que meu pai estava me esperando no salão real, então me vesti apropriadamente e fui ao seu encontro. Quando cheguei lá, encontrei meu pai sentado no trono real, com um pedaço de pergaminho nas mãos, o qual disse, ao me ver:

- Bom dia filho! Bem, como eu havia prometido, eu mudei a seguinte lei "Práticas de sodomia ou homossexualismo serão punidas com exílio ou forca" para "Práticas de sodomia ou homossexualismo serão julgadas pelo rei e punidas ou não de acordo com o seu bom senso". O que acha?
- Sinceramente pai? O que seria o seu bom senso, nesse caso?
- Bem, práticas que escandalizem o povo, atentem contra a moral e os bons costumes...exibicionismos, por exemplo, falta de pudor...esse tipo de prática...
- Pai, eu acho que isso está muito amplo e duvidoso, principalmente, porque a boa moral do povo é condenar os homossexuais por um simples beijo, por exemplo...bem, mas isso já é um começo...depois disso vai ser preciso que o povo entenda essas "práticas" apropriadamente, ou pelo menos o senhor, na verdade, já que é quem vai ser o juiz, certo?
- Sim...as condenações estarão sujeitas à minha opinião!
- Bem, apesar de tudo, o senhor sempre foi um rei sensato em muitos outros assuntos, então eu acho que já está de bom tamanho que as pessoas não sejam imediatamente mortas ou exiladas!
- Ah...bem...obrigado meu filho!

Meu pai começou a ficar muito vermelho e eu deduzi que foi pelo fato de ter dito a ele que ele era um rei sensato, mas, de fato, ele sempre fora em muitos assuntos do reino. O único assunto com o qual ele tinha pouca sensatez era o homossexualismo, mas, pelo visto, isto estava para mudar. Depois do rosto do meu pai voltar à coloração normal, ele continuou:

- Bem, então é isso! Vou anunciar a mudança na lei hoje ao meio dia!
- Certo! Bom, então eu vou colocar outras veste mais apropriadas a anúncios reais, digamos assim, e o encontro em seus aposentos, tudo bem?
- Claro, vá lá!

Eu, primeiramente, fui até o quarto de Manoel e depois ao de Bernardo, para lhes contar da mudança na lei e ambos, como eu, acharam que ela ainda não favorecia totalmente a liberdade dos homossexuais, mas pelo menos não lhes mandava diretamente pata a forca. Depois disso, eu lhes aconselhei a vestir roupas apropriadas para a ocasião e segui até meu quarto para também me vestir apropriadamente.
No horário em que meu pai havia mencionado, todos nós estávamos na sacada do quarto dos meus pais, incluindo a minha mãe que, com muito esforço, queria presenciar aquele momento no qual seria feito o anúncio da mudança da lei que proibia o homossexualismo para uma que, possivelmente, poderia permiti-lo.
Entretanto, para tristeza de todos que precisavam ou desejavam que aquela lei mudasse, o anúncio nunca foi feito, pois a minha mãe, inesperadamente, desmaiou em pleno discurso do meu pai, o que o levou a cancelar a cerimônia para verificar o estado da minha mãe, que, infelizmente, morrera no momento em que atingiu o chão. Em resumo: eu perdi a minha mãe e a minha possibilidade de voltar a Heliópolis como alguém que contribuíra para tornar a vida daqueles que amam alguém do mesmo sexo, possivelmente, um pouco melhor e suportável, pois eu sabia que o único motivo de estar ali gozando de privilégios como a anulação do meu exílio, a anistia de William e Tomás e, até mesmo, de Bernardo e Manoel, era o grande amor do meu pai pela minha mãe.
Assim, deu-se inicio à minha queda, pois, agora que a minha mãe se fora, o que dilacerou o meu coração, eu sabia que, provavelmente, eu precisaria fugir imediatamente, para escapar da intolerância do meu pai ao meu "estilo de vida", mesmo porque eu não queria que nada de mal ocorresse a Bernardo ou Manoel - as únicas pessoas em Heliópolis a quem eu realmente poderia chamar de família a partir daquele momento.

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